domingo, 14 de fevereiro de 2016

sábado, 21 de março de 2015

Subversões de uma Dona de Casa Feliz

Judith se levanta ao alvorecer, dedicando-se religiosamente a uma série de tarefas cotidianas que para a maioria das pessoas são entediantes, mas que ela sente prazer em desempenhá-las com minúcia e zelo. Coloca a água do café no fogo; esquenta o leite; põe na mesa o pão fresquinho que comprou meia hora antes na padaria; prepara a lancheira das crianças; separa os uniformes e dá uma última conferida nos livros a serem levados pra escola. Feito isso, segue para o quarto dos dois filhos, Lucas e Davi, acorda cada um com um beijo de bom dia e advertências- “quem mandou passar da hora de dormir”- logo em seguida, parte para o seu quarto onde separa a roupa que o marido, Guilherme, irá vestir e vê se ele está precisando de algo antes de voltar para cozinha. Minutos depois todos se encontram para o dejejum e, sem muita demora, pai e filhos saem juntos, ele os deixa no colégio e vai para o trabalho.  Todos voltam a se encontrar as doze e meia para o almoço.
Nesse intervalo, Judith se dedica às suas atividades, sentindo liberdade no que para muitos é prisão, e, por esse motivo, recusa-se a ter uma empregada doméstica, mesmo tendo possibilidades financeiras. Para ela, o ato de cuidar dos pormenores da casa reflete, não apenas, uma preocupação com a organização do lugar, mas sua devoção ao bem-estar da família. É quase um ritual: liga o som; coloca uma música estimulante; prepara o almoço; limpa a casa; lava e engoma as roupas; faz pequenos reparos nas que precisam; e, rega as plantas. Tudo tem que estar impecável até o almoço, hora em que o marido e os filhos fazem uma pequena pausa, antes de retomarem suas atividades, o marido volta ao trabalho e os filhos seguem para o reforço escolar, deixando-a com a tarde livre.
Os prazeres vespertinos de Judith são de outra ordem, residem num campo de desejos bem singulares, mas que trazem uma satisfação inigualável. Ela se entrega as delícias de conquistas diárias, que a fazem sentir-se desejada e trazem consigo anseios de volúpia, sensação constante a cada encontro com Otávio, gerente da delicadetessen que fica a três quadras da sua casa.
Todos os dias, por volta das quinze horas, Judith toma um banho demorado, como se estivesse lavando a alma, veste-se de perfume exalando cheiro de flor por toda casa, coloca um vestido que deixa à mostra sua silhueta e sai, sem pressa, vai até a delicatessen comprar o lanche dos filhos. A cada ida, uma nova troca de olhares com Otávio, uma mão sobre a outra, um leve atrito de pele, quase sem querer, e um breve sussurro ao pé do ouvido. Esse conjunto de pequenos detalhes provoca-lhe um verdadeiro frenesi, então ela volta pra casa altiva, dona de si, e espera ansiosa pela chegada da família. Após o jantar, esticam uma conversa na sala, pouco tempo depois os filhos seguem para o quarto e ela fica a sós com Guilherme. Ali mesmo, ainda tomada pelas emoções despertadas durante o encontro da tarde, ela começa uma troca de carícias com o marido, desliza as mãos suavemente pelo seu corpo, beija-lhe a face, os lábios, à medida que as sensações se intensificam eles seguem para o quarto, despindo-se de roupas e pudores numa deliciosa troca de prazeres.
Na manhã seguinte, repete-se todo ritual do dia anterior, mas à tarde há sempre uma novidade e uma descoberta. Nesta, em especial, Judith foi tomada por uma súbita invasão de emoções, após ter lançado insinuantes olhares e gestos na direção de Otávio, foi convidada para um encontro mais reservado. Sem muita preocupação com os comentários, ela o acompanhou até sua sala e, sem dizer nada, acariciou suas mãos, seu rosto, seu corpo, encostou seus lábios nos dele, logo em seguida virou o rosto e, delicadamente, beijou-lhe o pescoço. Otávio, num ímpeto, segurou-lhe pelo queixo e foi ao encontro dos seus lábios, mas Judith não permitiu mais que um simples beijo, então ele perguntou - O que você quer de mim?- ela, prontamente, respondeu- Exatamente isso! Sem entender direito o que aquela resposta significava, Otávio continuou- Todas as tardes eu fico a tua espera, imaginando a tua presença e de tão forte a sensação chego a sentir teu cheiro.  Já te despir com olhares e te desejei a cada toque de mão. Não aguento mais esse jogo, que só atiça os meus desejos, mas não os sacia. Judith ouviu tudo, calmamente, e sem dizer uma palavra saiu da sala.
Voltou pra casa, preparou a mesa do jantar para receber seus rapazes, como chama carinhosamente Guilherme e os filhos, e mais tarde se entregou a mais uma ardente noite de prazer com o marido. Em meio aos beijos e carícias, ela lembrava de todas as emoções que Otávio a fez sentir e, isso, fazia com que houvesse mais paixão  em sua entrega. No dia seguinte, Judith voltou a se encontrar com Otávio na sala dele e, assim como no dia anterior, trocaram carinhos, mas ela sempre recusava suas investidas mais íntimas. Com as emoções à flor da pele, ele disse- Esse jogo está acabando comigo, uma enorme confluência de sensações que se encontram reprimidas, isso está me fazendo muito mal, acho que vou enlouquecer... Enlouquecer de desejo pode? Judith, no entanto, sentia prazer com tudo isso, adorava provocar e sentir esse frisson, era isso que a motivava.
Novamente, sem dar explicações, voltou para o aconchego do seu lar, onde se sentia protegida, realizada e tendo tudo que sempre quis. Teve uma noite maravilhosa com Guilherme, entre gemidos e sussurros, lembrava-se das coisas que Otávio havia lhe dito e sentia um prazer indescritível, fazendo saltar-lhe dos lábios juras de amor ao marido.
Todo esse jogo de sedução envolvendo Otávio despertava em Judith uma devoção por si mesma e conduzia-lhe a um universo de sensações transcendentes do qual só ela desfrutava. Foi assim a cada encontro, ela se permitiu sentir intensamente, preocupando-se apenas com seus desejos, por mais singulares que fossem eram dela, pertenciam a um lugar que só ela tinha acesso e mais ninguém. Deixou isso bem claro em seu último encontro com Otávio.
Combinaram um dia antes que se veriam em outro lugar, longe da vista de todos, no apartamento dele. Depois de tantas esquivas de Judith, ele já não aguentava mais servir de joguete para os caprichos dela, esperava que num encontro mais íntimo ela pudesse, enfim, ceder aos desejos que, para ele, eram reprimidos e entregar-se aos seus instintos mais lascivos. Na hora marcada eles se encontraram na porta do prédio, entraram juntos, ele morava no segundo piso, caminharam em direção as escadas e ainda no vão de acesso ao primeiro andar começaram as carícias. Judith encostou, docemente, os lábios no rosto dele, como quem fosse beber cada gota do suor que escorria da sua face, com delicadeza deslizou as mãos pelo seu corpo, segurando-lhe as mãos trêmulas. A cada degrau que subiam, havia um toque que inebriava a alma, aquecia o corpo, acelerava os batimentos cardíacos e deixava a respiração cada vez mais ofegante.
 Quando chegaram à porta do apartamento Otávio já não se continha de tanto desejo, as mãos trêmulas o impediam de abri-la, só depois de algumas tentativas, entre beijos e carinhos, ele finalmente conseguiu. Nesse momento, Judith olhou pra ele fixamente, respirou fundo e se recompondo disse tchau. Ao ouvir isso, ele ficou sem entender nada, achou que fosse brincadeira, mas ao vê-la se virar e caminhar em direção as escadas se descontrolou e num tom colérico bradou- Você quer me fazer de palhaço? Que brincadeira é essa? Eu não sou passatempo de ninguém!- Correu em sua direção, deu-lhe um puxão pelo braço e falou- Você não vai dizer nada?- então Judith, calmamente, virou em sua direção, tirando as mãos dele do seu braço, e disse- Você não entendeu?- ele ficou mudo e ela completou- Eu já tive o que queria em todos os nossos encontros, o que me seduz não é a consumação, mas iminência de poder sem, no entanto, fazê-lo. Tudo isso me conduz a êxtase inexplicável e a um prazer sem limites. Num misto de orgulho e superioridade ela olhou mais uma vez pra ele, viu seu descontrole através das lágrimas que teimavam em cair, e disse- Este ciclo é finito, portanto, contenha-se! Não pense em me procurar, eu o ignorarei. Adeus!
Após ouvir tudo calado Otávio ficou prostrado ao chão e Judith seguiu tranquilamente, como se nada tivesse acontecido. Saiu do prédio e foi em direção ao posto de táxi. Lá chegando, acertou com um motorista, durante o caminho abriu a bolsa, pegou um pequeno espelho e começou a retocar a maquiagem. Percebeu que o condutor a observava pelo retrovisor, fazendo com ela empenhasse certa sensualidade nesse ritual. Ao chegar em casa preparou uma bela mesa para receber seus rapazes e  na calada da noite se entregou a momentos de prazeres intensos com Guilherme, sentindo-se plena e feliz.
No dia seguinte, surpreendeu-se com um som de buzina na porta da sua casa, foi até o portão e avistou o motorista de táxi do dia anterior, ele foi entregar o estojo de maquiagem que ela havia esquecido no carro. Judith agradeceu com um sorriso malicioso e disse- Até breve!

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Uma Conversa ao Pé do Ouvido com Carmem

Muitaente costuma dizer que de médico e doido todo mundo tem um pouco, mas em certos casos a metade médico dá lugar a um bêbado, do tipo pungente-carente-sorridente, que quando se une àquele doido do qual ninguém escapa é uma verdadeira explosão. Um dia desses conversando com Carmen, uma dessas bêbadas e loucas super queridas, cheguei à famigerada constatação de Shakespeare, em Hamlet, de que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia” e eu nem precisei escrever páginas tão densas, bastou um “cadinho” de tempo e alguns "Santa Helena", desses que se compra à R$ 23,00 no supermercado (Que Shakespeare me perdoe pela brincadeira infame!).
Carmem, uma mulata alta de cabelos ondulados e olhos gateados, com seu sorriso sibilante e voz imponente nunca chega despercebida a um lugar, mas ela também não faz a menor questão de ser discreta. Costuma dizer que, quem se deixa ofuscar não merece aparecer, e esse, sinceramente, não é o seu caso. Um dia desses fui convidada a ter uma conversa ao pé do ouvido com esta querida, confesso que, inicialmente, estranhei o porquê de tanta reserva ainda mais se tratando da pessoa em questão, sempre tão espontânea, mas à medida que a conversa se adensava pude compreender os motivos da sua prudência. 
Já passava da meia noite e da terceira garrafa de vinho quando Carmen começou a contar o que ela chamou de "epifania da alma". A princípio, não consegui entender do que se tratava, ela usava frases desconexas e já não articulava direito as palavras, imaginei que fosse efeito da bebida, mas aos poucos fui juntando as peças e percebi que a bebida foi só um meio pra ela se despir de pudores (Às vezes é preciso!).
Contou-me que estava cansada de temer a si, seus desejos, principalmente, o que eles representavam e, apesar de se julgar livre para viver o que acredita, foi surpreendida presa a si mesma, havia se enquadrado docilmente a padrões sociais que considerava rígidos. Falou com certa indignação - Sempre me achei tão altiva e dona de mim, agora percebo que vivo numa “cela de conforto” da qual venho desfrutando sem me rebelar, reclamo de pessoas que classifico como "moralistas", no entanto elas têm minha anuência!
Parou por uns minutos, abriu outro vinho, acendeu um cigarro e continuou- Fui meu próprio algoz todo esse tempo – questionava-se! Num tom colérico me perguntou- Por que questionamos com tanta facilidade atitudes alheias e não temos a mesma destreza diante dos nossos próprios atos?- e, sem demora, ela mesma respondeu- Ah, minha amiga, muitas vezes o caminho para o autoconhecimento requer uma viagem para dentro de nós mesmos e, quase sempre, o caminho é longo e tortuoso.
Entre pausas e recomeços Carmem prosseguia numa conversa que, em determinados momentos, parecia um misto de confissão e desabafo. Foi imperativa ao ressaltar que seria fiel a si mesma e ao que sentia, sem se importar com as convenções sociais. Relatou que fez uma deliciosa viagem a um mundo de prazeres só dela, sem se importar com os tabus que ainda cercam as relações que não se enquadram no binarismo de gênero, homem e mulher.
Sorriu e após um suspiro e outro, falou da noite de descobertas que havia tido com Hanna, uma gringa que gostava de frequentar o Oficina da Noite, um bar que ficava próximo a sua casa e reunia artistas locais em noites de voz, violão e poesia.  De lá até sua casa foram apenas alguns passos para Carmem descobrir um pouco mais sobre si e seus prazeres, não tão ocultos, mas nada óbvio. Falou sobre a delicadeza dos beijos e suavidade dos carinhos de Hanna e como eles lhe conduziram a lugares nunca antes explorados. Com entusiasmo e um brilho singular nos olhos me contou do arrebatamento que sentia a cada abraço e de como foi bom estar envolta naqueles braços.
Depois de um tempo narrando a sutileza daqueles momentos, Carmem começou a se indagar sobre algumas questões que, segundo ela, contribuíram pra um pensamento tão limitador de si e do que ela chamou de suas “possibilidades de felicidade”. Mencionou que houve ocasiões anteriores a essa em que ela poderia ter vivenciado momentos tão intensos e prazerosos como os que ela teve com Hanna, mas que não conseguiu dar vazão aos seus anseios porque estava aprisionada a uma visão de mundo que classifica os sujeitos de acordo com sua orientação sexual  e, mesmo se julgando livre de preconceitos, não tinha forças pra romper com essa estrutura.
De repente parecia que havia dado um basta na conversa, mas após alguns minutos, deu uma vibrante gargalhada denunciando um traço que lhe é peculiar, virou pra mim com uma vivacidade contagiante e disse- Chega, eu quero mais é ser livre!- Sorriu novamente, ergueu a taça e propôs um brinde- A todos aqueles que têm coragem suficiente para libertarem seus corpos!
E a noite seguiu com música, vinho e uma boa conversa... Já perto de ir embora perguntei a Carmem por que tinha confiado em mim para falar de algo tão íntimo, ela me olhou pensativa e disse- Nem todo mundo está preparado para “verdades inteiras” (Seja lá o que isso representa.), para alguns só “meias verdades”, para os meus loucos preferidos “verdades que despem”, não importa se só as meias ou a lingerie toda!  ;-)