domingo, 22 de fevereiro de 2015

Uma Conversa ao Pé do Ouvido com Carmem

Muitaente costuma dizer que de médico e doido todo mundo tem um pouco, mas em certos casos a metade médico dá lugar a um bêbado, do tipo pungente-carente-sorridente, que quando se une àquele doido do qual ninguém escapa é uma verdadeira explosão. Um dia desses conversando com Carmen, uma dessas bêbadas e loucas super queridas, cheguei à famigerada constatação de Shakespeare, em Hamlet, de que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia” e eu nem precisei escrever páginas tão densas, bastou um “cadinho” de tempo e alguns "Santa Helena", desses que se compra à R$ 23,00 no supermercado (Que Shakespeare me perdoe pela brincadeira infame!).
Carmem, uma mulata alta de cabelos ondulados e olhos gateados, com seu sorriso sibilante e voz imponente nunca chega despercebida a um lugar, mas ela também não faz a menor questão de ser discreta. Costuma dizer que, quem se deixa ofuscar não merece aparecer, e esse, sinceramente, não é o seu caso. Um dia desses fui convidada a ter uma conversa ao pé do ouvido com esta querida, confesso que, inicialmente, estranhei o porquê de tanta reserva ainda mais se tratando da pessoa em questão, sempre tão espontânea, mas à medida que a conversa se adensava pude compreender os motivos da sua prudência. 
Já passava da meia noite e da terceira garrafa de vinho quando Carmen começou a contar o que ela chamou de "epifania da alma". A princípio, não consegui entender do que se tratava, ela usava frases desconexas e já não articulava direito as palavras, imaginei que fosse efeito da bebida, mas aos poucos fui juntando as peças e percebi que a bebida foi só um meio pra ela se despir de pudores (Às vezes é preciso!).
Contou-me que estava cansada de temer a si, seus desejos, principalmente, o que eles representavam e, apesar de se julgar livre para viver o que acredita, foi surpreendida presa a si mesma, havia se enquadrado docilmente a padrões sociais que considerava rígidos. Falou com certa indignação - Sempre me achei tão altiva e dona de mim, agora percebo que vivo numa “cela de conforto” da qual venho desfrutando sem me rebelar, reclamo de pessoas que classifico como "moralistas", no entanto elas têm minha anuência!
Parou por uns minutos, abriu outro vinho, acendeu um cigarro e continuou- Fui meu próprio algoz todo esse tempo – questionava-se! Num tom colérico me perguntou- Por que questionamos com tanta facilidade atitudes alheias e não temos a mesma destreza diante dos nossos próprios atos?- e, sem demora, ela mesma respondeu- Ah, minha amiga, muitas vezes o caminho para o autoconhecimento requer uma viagem para dentro de nós mesmos e, quase sempre, o caminho é longo e tortuoso.
Entre pausas e recomeços Carmem prosseguia numa conversa que, em determinados momentos, parecia um misto de confissão e desabafo. Foi imperativa ao ressaltar que seria fiel a si mesma e ao que sentia, sem se importar com as convenções sociais. Relatou que fez uma deliciosa viagem a um mundo de prazeres só dela, sem se importar com os tabus que ainda cercam as relações que não se enquadram no binarismo de gênero, homem e mulher.
Sorriu e após um suspiro e outro, falou da noite de descobertas que havia tido com Hanna, uma gringa que gostava de frequentar o Oficina da Noite, um bar que ficava próximo a sua casa e reunia artistas locais em noites de voz, violão e poesia.  De lá até sua casa foram apenas alguns passos para Carmem descobrir um pouco mais sobre si e seus prazeres, não tão ocultos, mas nada óbvio. Falou sobre a delicadeza dos beijos e suavidade dos carinhos de Hanna e como eles lhe conduziram a lugares nunca antes explorados. Com entusiasmo e um brilho singular nos olhos me contou do arrebatamento que sentia a cada abraço e de como foi bom estar envolta naqueles braços.
Depois de um tempo narrando a sutileza daqueles momentos, Carmem começou a se indagar sobre algumas questões que, segundo ela, contribuíram pra um pensamento tão limitador de si e do que ela chamou de suas “possibilidades de felicidade”. Mencionou que houve ocasiões anteriores a essa em que ela poderia ter vivenciado momentos tão intensos e prazerosos como os que ela teve com Hanna, mas que não conseguiu dar vazão aos seus anseios porque estava aprisionada a uma visão de mundo que classifica os sujeitos de acordo com sua orientação sexual  e, mesmo se julgando livre de preconceitos, não tinha forças pra romper com essa estrutura.
De repente parecia que havia dado um basta na conversa, mas após alguns minutos, deu uma vibrante gargalhada denunciando um traço que lhe é peculiar, virou pra mim com uma vivacidade contagiante e disse- Chega, eu quero mais é ser livre!- Sorriu novamente, ergueu a taça e propôs um brinde- A todos aqueles que têm coragem suficiente para libertarem seus corpos!
E a noite seguiu com música, vinho e uma boa conversa... Já perto de ir embora perguntei a Carmem por que tinha confiado em mim para falar de algo tão íntimo, ela me olhou pensativa e disse- Nem todo mundo está preparado para “verdades inteiras” (Seja lá o que isso representa.), para alguns só “meias verdades”, para os meus loucos preferidos “verdades que despem”, não importa se só as meias ou a lingerie toda!  ;-)